Choque Cultural

Tenho noção que o texto que estou publicando pode ser alvo de muitas críticas (negativas em sua maioria), pois abordarei questões que mexem com o orgulho das pessoas. Não quero ofender ninguém e não me excluo de muitas atitudes que condeno – no entanto, abro meus olhos e reconheço a necessidade de mudar ou, pelo menos, fazer a minha parte.

Tirei duas semanas de férias e viajei com minha mulher. Passamos sete dias no Canadá e cinco nos Estados Unidos. Foi minha primeira viagem internacional – nunca fui de viajar, mas a Leticia sempre gostou, então fiz por ela. Claro que adorei e pretendo continuar neste caminho sempre que puder.

Não vou dar dicas dos locais interessantes ou das lojas de Nova York com preços atrativos. O que quero relatar é o choque cultural que tive – entendendo cultura mais como padrão de comportamento.

As diferenças começaram já no ônibus da excursão. Eram 41 pessoas, dentre elas, apenas dois espanhóis e os restantes brasileiros. Entre duas cidades do Canadá que visitamos, o guia fez uma exercício de apresentação – todos deveriam ir a frente do ônibus e falar de si. A maior parte dos brasileiros era formada por pessoas de alto nível financeiro – médicos, advogados, empresários, industriais. (eu não me incluo neste seleto grupo…). Os dois espanhóis eram professores universitários – conversando com eles, percebi que eram de classe média (mas a média do padrão europeu). A conclusão é que os brasileiros eram ricos e os espanhóis viviam bem. Isto indica que o acesso a educação e a cultura estavam presentes nos dois grupos. Entretanto, o nível cultural era extremamente diferente.

Inevitavelmente ouvia comentários dos presentes sobre os locais visitados. Desculpem o termo, mas a imbecilidade era tão grande que me fazia rir. Dois exemplos: dentro de um museu, onde a história da civilização canadense era contada, uma mulher se apegou ao fato de nunca ter visto a cabeça de um bacalhau! Sendo que o mesmo bacalhau ainda era de mentira. O outro exemplo ocorreu quando o guia, contando a história da colonização em Quebec, uma cidadã (que não ouso reproduzir o nome) grita, empolgadíssima, sobre a presença de uma loja de sapatos famosa, e complementa que passou toda sua viagem para Las Vegas comprando nesta loja, enquanto o marido conhecia a cidade.

Obviamente, não baseio minhas conclusões sobre estes dois exemplos, foram incontáveis observações, olhares, conversas que me fizeram ter esta opinião sobre o grupo de brasileiros – que pode muito bem representar a população inteira (com todo o preconceito que a afirmação contém). O grupo controle que utilizei foi o casal de espanhóis. Era clara a intenção cultural deles em uma viagem como esta – enquanto o brasileiro queria conhecer, o espanhol queria aprender.

A visão sobre cultura é bem diferente. Se disser a um amigo (representando o brasileiro comum) que fui a uma exposição de arte ou museu, duas serão as possíveis respostas: que sou gay ou que é perda de tempo. Qual a utilidade direta da arte? Aparentemente nenhuma. Então, para que apreciá-la? Enriquecer-se culturalmente não é mais importante que ir a praia, dançar no carnaval ou assistir a um jogo de futebol.

Admito que eu fui assim também: não via importância na apreciação pela arte. Pelo menos, não via como isso poderia me ajudar. Gostava por opção. Hoje, principalmente após esta viagem, percebi que a arte, a vida cultural, é uma necessidade do ser humano. Não fisiológica, mas social. O ser cultural é superior, mas não na concepção humanista e sim, antropológica: não há cultura superior, todas são válidas; importante é o interesse pela arte, pela exteriorização de uma mensagem. Apreciar a arte é se conectar às pessoas, independente do tempo e origem: arte moderna, romântica, gótica, arte canadense, brasileira, francesa… Cito Manuel Castells: “Os protocolos de significado são pontes de comunicação entre hipertextos personalizados. No nosso contexto, o mais importante desses protocolos é a arte, em todas suas manifestações. (…) De fato, a arte sempre foi uma ponte entre pessoas de diferentes países, culturas, classes etc.”

E esta vida sem sentido artístico nos leva ao segundo choque. Não afirmo que o principal (único) motivo para o comportamento social do brasileiro seja a falta de interesse pela cultura, mas sei que é forte contribuinte.

Desde pequeno, ouço que os brasileiros são cativantes, calorosos, simpáticos, receptivos, legais… Enquanto que os estrangeiros (europeus e norte-americanos) são frios, antipáticos, de difícil convívio. Realmente, ao conversar com os canadenses ou americanos, seja nas lojas, restaurantes ou nas ruas, percebi que são bastante fechados. Amigos que moram ou moraram fora me relatam este afastamento e a dificuldade de relacionamento interpessoal.

A relação pessoal, portanto, dos brasileiros é melhor que a dos países desenvolvidos. Todavia, o que me chamou a atenção foi a vida em comunidade. Se a amizade não possui muita importância, o respeito social é enorme. O espaço público aqui não é de ninguém, por isso o “cidadão” brasileiro faz xixi na rua, joga lixo, ignora as leis de trânsito, quebra lixeiras, rouba placas, esculturas e plantas e por aí vai. Lá fora, o espaço público é de todos, há respeito pelas regras de convívio – se não pode ou é socialmente inaceitável, não é feito.

Noutro dia, estava caminhando de volta para casa quando vi uma senhora jogar um papel no chão. Havia uma lixeira logo ao seu lado, no entanto, ela nem se preocupou em procurar, simplesmente jogou fora. É o pensamento do “minha sujeira eu deixo para trás, assim não vejo e alguém resolve”. Eu pensava assim com a louça de casa; a cozinha era mágica: era só deixar na pia que, depois de um tempo, estava tudo lavado. Eu não me atentava ao fato de que havia uma mulher, minha mãe, que passava lá e limpava a minha sujeira. As pessoas esquecem que se todos pensarem assim, o Brasil só terá louças sujas e as mães, ao invés de cuidar de outra coisa mais importante, só terão tempo de lavar a louça.

Para dar um exemplo comparativo, no Canadá é proibido para as motocicletas trafegarem entre os carros, como no Brasil. Você acha que eu escutei em algum momento as buzininhas irritantes dos motoboys passando pelo corredor entre os carros? Estava dentro do ônibus em um engarrafamento (causado por obras nas estradas), quando avistei, mais a frente, duas motos, uma ao lado da outra, atrás de um carro, seguindo o fluxo do engarrafamento. Quase chorei de emoção. Aqui no Brasil, se um carro tenta trocar de pista e para em cima da faixa, o motociclista reclama (buzina e xinga) e (eu vi isso na minha frente!) para conseguir passar, fecha o retrovisor do carro a sua frente e vai embora.

Peço perdão pelo tom de desabafo, mas é muito decepcionante depois de 27 anos protegendo o Brasil, dizendo que não o trocaria por nenhum outro lugar do mundo, descobrir que estava errado e que este país não é um bom lugar para morar. Eu, particularmente, troco o calor humano pelo respeito social, pela vida decente em comunidade, pela competência administrativa do Estado em proporcionar educação, entretenimento e saúde. Quero dizer, trocaria…

Tenho noção que as coisas não são tão bem definidas, que lá fora há injustiças, desrespeito e outras mazelas. Mas elas são consideradas exceção. No Brasil, imaginar que uma pessoa respeitará uma regra quando ninguém está vendo é considerado incrível, digno de uma reportagem especial na TV: não usar o acostamento em um engarrafamento, devolver um envelope de dinheiro achado na rua, não fazer xixi na rua, devolver o troco dado a mais num restaurante, jogar lixo na lata de lixo são excelentes pautas de reportagens – o Fantástico adora analisar a vida do cidadão que faz isso.

Enquanto adotarmos a política do “agora é minha vez”, não chegaremos a lugar nenhum, pois sempre será a vez de alguém avançar o sinal, jogar o lixo na rua, desviar dinheiro dos cofres públicos, roubar, contrabandear, furar fila, urinar no espaço público, criar uma lei para benefício de poucos, trair, matar, desrespeitar o próximo, sonegar impostos, poluir o ambiente… Se cada um lavasse a própria louça, não haveria louça por lavar.

8 Respostas to “Choque Cultural”

  1. Bruno Says:

    Concordo em gênero, número e grau!

    Parabéns pelo texto!

  2. Excelente texto! Infelizmente é verdade. Mas não podemos nos conformar com essa situação. Mesmo que a pilha de louça seja grande, se lavarmos o nosso copo e conseguir que a pessoa ao lado lave o seu, já é um grande avanço.

  3. Nada como um choque cultural para abrir os olhos, mesmo que aos 27 anos. Quisera que todos os brasileiros tivessem a oportunidade (e a capacidade) de se sentirem um “peixinho fora d’agua” (ou da lama) ao visitar um país desenvolvido.

    Por que viver para sempre no país que nasceu? Sentir-se mal por abandonar a pátria amada? Besteira!

    Faço e sempre farei a minha parte e o melhor que puder em qualquer lugar. A vida é muito curta para viver lavando a louça dos outros.

  4. Angela Says:

    Maravilha, não imaginei que uma viagem tão curta fosse promover uma reflexão tão profunda. Parabéns e continue escrevendo o que pensa que ajudará a muitos.bjs

  5. Gilberto Says:

    Antigamente diziam que isso era uma compensação por não termos terremotos, furacões, etc. E agora? Até terremoto tem!

    Falando sério: a diferença é que nos lugares em que você foi as pessoas sabem que se fizerem qualquer besteirinha vão pagar uma multa, ou vão passar a noite na cadeia, etc. A impunidade não é total. Essa mesma turma de lá, quando vem p/ cá, libera geral. Aqui não acontece nada mesmo, certo? Os maiores traficantes chefes de quadrilha e assassinos são liberados com 1/6 da pena que por sua vez não pode passar de 30 anos…Veja só o turismo sexual no nordeste (com menores) e mesmo logo ali em copacabana. Os alemães/ itallianos e portugueses jamais pensariam em fazer na terra deles o que fazem aqui. Mas aqui, tá tranquilo!
    Outra coisa que contribui p/ essa zona toda é a política do coitadinho: ah, ele só roubou um pouquinho…tem gente que rouba muito mais e tá solta…Não pode dar certo, né?
    Mas com tudo isso ainda prefiro ficar por aqui a ser cidadão de segunda classe no exterior, sem direitos, discriminado e suspeito sempre.
    Abçs

  6. Bruno Fonti Says:

    Audinho, parabéns pelo texto. Muito bem escrito e, infelizmente, verdadeiro.

  7. Gustavo,
    Admiro sua sensibilidade em perceber a diferença entre os indivíduos que apreciam a arte e tudo que ela representa para história e formação da cultura. Em nossas viagens sempre pautamos nosso objetivo neste campo como também na admiração pela consciencia destas populações. E você não esteve ainda na Europa….., espere só pra ver a Alemanha, e vai quase concordar com aquele cara que achava que eles eram uma raça superior (brincadeirinha…) Beijos.

  8. Fabio Says:

    Audinho, belo texto. O impacto que vc sofreu em 2 semanas e a sensacao de que o mundo do lado de la eh diferente eh o mesmo que venho sofrendo ha 3 anos. Dificil eh colocar os pros e contras na mesa e tomar uma decisao. pelo menos no meu caso. Devo eu optar pela qualidade de vida, pelo trabalho em horas sensatas, por nao temer andar na rua de madrugada, pelo respeito a individualidade e tudo o mais? Ou devo eu pensar que vou comer picanha todo dia, ir no Maracana e no Bibi sucos, tomar cerveja no Country e passar o final de semana em Buzios? Complicado, meu caro. Aqui em Londres a vida eh outra. Mesmo sendo classe media, media, media mesmo, tenho acesso a tudo que um pais civilizado, de gente civilizada tem a oferecer. Paris eh ali do lado e o final de semana em Buzios pode ser em Amsterdam pelo mesmo preco. Todo mundo se respeita e ja me peguei andando ai no Rio, no shopping, esbarrando nos outros e dizendo -‘sorry!’. Longe de mim exaltar os ingleses ou a Europa. Na minha modesta teoria, eles fazem o minimo. O minimo necessario para que tudo funcione ‘minimamente’ bem. E ai as coisas realmente funcionam. Sem me alongar, semana passada recebi em casa um folheto explicativo, onde a sub-prefeitura do meu bairro explicava que estavam ocorrendo certos problemas em determinado sinal de transito. Tudo com fotos, graficos e um texto explicativo ao lado. Por meio do cartao resposta o residente pode escolher a opcao de sua preferencia e, de acordo com o voto popular, concretizando a tao sonhada democracia, a obra vai seguir em frente, com prazo pra comecar e pra acabar. Queria terminar meu comentario com algo bonito, tipo estamos caminhando, as pessoas estao comecando a lavar sua propria louca, mas … no fundo … acho que nao.

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